
O debate sobre governança corporativa ganhou um novo e relevante capítulo no Reino Unido. Em maio de 2024, o governo britânico apresentou uma proposta legislativa que promete mudar, de forma permanente, a dinâmica das Assembleias Gerais de Acionistas — as conhecidas AGMs.
A proposta foi divulgada no contexto de uma ampla revisão das regras corporativas, liderada pelo Department for Business and Trade (DBT), equivalente ao Ministério da Economia britânico. O texto sugere que as empresas listadas possam, se desejarem, realizar suas assembleias 100% online, eliminando a exigência de encontros presenciais ou híbridos.
A medida surge como resposta à experiência vivida durante a pandemia de Covid-19, quando as AGMs virtuais se tornaram uma solução emergencial, adotada de forma provisória entre 2020 e 2022. Na época, a digitalização foi bem recebida por parte do mercado, que viu ganhos em agilidade, eficiência operacional e redução de custos.
Agora, o governo britânico quer transformar essa prática em algo permanente, oferecendo às empresas mais flexibilidade na condução de seus processos societários.
No entanto, a proposta rapidamente acendeu um alerta entre investidores, especialistas em governança e organizações que representam acionistas. Se, de um lado, é inegável que a tecnologia oferece ganhos operacionais, de outro, surgem dúvidas sérias:
🔍 Será que as AGMs totalmente virtuais conseguem garantir o mesmo nível de transparência, diálogo e fiscalização? 🔍 O engajamento dos acionistas — especialmente dos minoritários e dos investidores estrangeiros — estará realmente protegido nesse novo formato?
Essas são questões centrais que dominam as discussões nas rodas de negócios, nos fóruns de governança e nos bastidores do mercado de capitais britânico.
Vamos entender, em detalhes, o que está em jogo, quais são os argumentos de cada lado e os impactos dessa decisão — não só para o Reino Unido, mas também para o mercado global.

O que são AGMs e qual sua importância?
A Annual General Meeting (AGM), ou Assembleia Geral Ordinária, é um evento fundamental na governança corporativa. É o momento em que os acionistas se reúnem para:
Analisar os resultados da empresa.
Votar nas demonstrações financeiras.
Eleger conselheiros e membros de comitês.
Deliberar sobre dividendos e outros temas estratégicos.
Em resumo, é quando os donos da empresa — os acionistas — exercem formalmente seus direitos.
Por isso, garantir que essas reuniões sejam transparentes, acessíveis e democráticas é vital para qualquer sistema de governança.
Por que o Reino Unido está discutindo AGMs 100% online?
A origem desse debate não é nova. Durante a pandemia de Covid-19, muitos países flexibilizaram suas regras e permitiram que as AGMs fossem realizadas de forma virtual.
A experiência foi, em muitos casos, positiva. Empresas reduziram custos. Houve aumento da participação de investidores estrangeiros e minoritários, que antes não conseguiam comparecer presencialmente.
Mas a volta à normalidade trouxe a pergunta: Devemos manter esse modelo digital?
No Reino Unido, uma proposta de lei sugere que as empresas possam optar por AGMs totalmente online, sem a obrigação de reuniões presenciais ou híbridas.
Quais são os argumentos a favor?
Os defensores da proposta no Reino Unido argumentam que as assembleias totalmente virtuais representam um avanço natural no processo de modernização das práticas corporativas. Apontam uma série de benefícios, tanto operacionais quanto estratégicos, que não podem ser ignorados.
Acessibilidade ampliada
Ao adotar o formato online, as empresas tornam suas assembleias mais acessíveis para todos os acionistas, independentemente de onde estejam. Acionistas estrangeiros, investidores institucionais, minoritários ou até pessoas físicas que antes tinham dificuldade para participar por conta de deslocamento ou custos logísticos, agora podem acompanhar, votar e interagir diretamente de qualquer lugar do mundo, apenas com acesso à internet.
Redução significativa de custos
Realizar uma assembleia presencial envolve despesas consideráveis: aluguel de auditórios, equipamentos de som e imagem, impressão de materiais, coffee breaks, segurança, transporte de executivos, entre outros. O ambiente virtual elimina grande parte desses custos, tornando o processo mais econômico para as empresas e, consequentemente, mais eficiente na gestão de recursos dos próprios acionistas.
Sustentabilidade e responsabilidade ambiental
Outro argumento muito relevante no contexto atual é o impacto ambiental. AGMs virtuais contribuem para a redução da pegada de carbono, eliminando deslocamentos de centenas de pessoas, viagens aéreas, consumo de energia em grandes eventos e uso de papel. Ou seja, alinham-se diretamente às práticas ESG, cada vez mais exigidas pelo mercado global.
Agilidade e eficiência nos processos
Organizar uma assembleia virtual é mais simples e rápido. As plataformas digitais oferecem soluções que automatizam o credenciamento, a condução da votação, o registro dos votos e até a geração de atas digitais. O resultado são processos menos burocráticos, com menor risco de erros e maior velocidade na divulgação de resultados.

E quais são os riscos e preocupações?
Apesar dos benefícios claros, a proposta também levanta alertas importantes entre investidores, especialistas em governança e entidades reguladoras.
🔸 Riscos para a transparência
Um dos pilares da boa governança é a transparência nas discussões e nas deliberações. No ambiente virtual, surgem dúvidas legítimas: será que os acionistas têm a mesma visão clara dos debates? É possível perceber nuances, reações, acordos de bastidores e mudanças de última hora quando tudo se limita a uma tela? A falta de contato físico pode reduzir a capacidade dos investidores de fiscalizar, questionar e até entender completamente as dinâmicas internas da empresa.
🔸 Perda de engajamento e diálogo limitado
As AGMs presenciais sempre foram espaços de debate aberto. Acionistas podem fazer perguntas diretamente aos conselheiros e executivos, solicitar esclarecimentos e até articular pautas junto a outros investidores. No ambiente online, existe o risco de que esse diálogo seja reduzido ou até controlado pela administração, que pode filtrar perguntas, limitar o tempo de fala e reduzir a interação a um canal de mensagens ou perguntas pré-selecionadas.
🔸 Desigualdade no acesso tecnológico
Embora a digitalização tenha avançado muito, nem todos os acionistas possuem a mesma familiaridade com ferramentas digitais. Investidores mais idosos, pessoas em regiões com internet instável ou aqueles com menor acesso à tecnologia podem acabar sendo excluídos do processo, mesmo que involuntariamente. Isso levanta preocupações sobre a inclusão e a equidade no exercício dos direitos dos acionistas.
🔸 Risco de concentração de poder
Esse talvez seja o ponto mais sensível. Ao reduzir os espaços de interação presencial — onde minoritários podem se reunir, trocar informações e até organizar movimentos coletivos —, o modelo 100% virtual pode, na prática, fortalecer ainda mais o poder dos acionistas majoritários ou do grupo controlador. Sem o ambiente físico de pressão e exposição pública, fica mais fácil para a administração controlar a pauta, limitar questionamentos e conduzir as assembleias de forma mais conveniente aos seus próprios interesses.

O que dizem os especialistas em governança?
A proposta de permitir que as Assembleias Gerais de Acionistas (AGMs) sejam realizadas 100% online de forma permanente não passou despercebida no Reino Unido. Pelo contrário, ela desencadeou um debate intenso entre os principais atores do mercado — advogados especializados em direito societário, investidores institucionais, conselheiros, órgãos reguladores e especialistas em governança corporativa.
Instituições de grande relevância no ecossistema de governança britânico, como o Institute of Directors (IoD) — que representa conselheiros, administradores e executivos — e o Investor Forum, que atua na defesa dos direitos dos investidores institucionais, já se posicionaram publicamente sobre o tema.
Essas organizações reconhecem que a transformação digital é bem-vinda e necessária. Não se trata de rejeitar a tecnologia. Ao contrário: a digitalização é vista como uma evolução natural, capaz de modernizar processos, tornar as empresas mais eficientes e até promover maior inclusão — desde que bem implementada.
O ponto central da crítica não está na adoção da tecnologia em si, mas sim na forma como ela será regulamentada e aplicada. Há uma preocupação clara: se as empresas puderem adotar, sem critérios mínimos, um modelo totalmente virtual para suas AGMs, isso pode abrir espaço para práticas que enfraquecem os princípios básicos da boa governança.
Os especialistas alertam que, sem regras bem definidas, o modelo digital pode:
Reduzir o espaço para o contraditório.
Limitar o debate aberto entre acionistas e a administração.
Enfraquecer os mecanismos de fiscalização.
E, principalmente, prejudicar a participação dos investidores minoritários, que já costumam ter menos poder e influência nas decisões.
Por isso, o que eles defendem não é o retorno obrigatório às assembleias presenciais, mas sim que qualquer transição para o digital venha acompanhada de salvaguardas robustas de transparência, inclusão, acessibilidade e proteção dos direitos dos acionistas.
Em resumo, a mensagem dos especialistas é clara: A tecnologia deve ser uma ferramenta para fortalecer a governança — e não um atalho para reduzir a accountability e concentrar ainda mais poder nas mãos de poucos.

E o que isso tem a ver com o Brasil e o mundo?
Muito mais do que parece à primeira vista. Embora o debate tenha ganhado força agora no Reino Unido, essa discussão é, na verdade, global e extremamente atual.
A origem desse movimento está diretamente ligada aos impactos da pandemia de Covid-19, entre 2020 e 2022. Durante aquele período, praticamente todos os países precisaram flexibilizar suas regras societárias para permitir que as assembleias de acionistas fossem realizadas no ambiente virtual. Foi uma solução emergencial, necessária para garantir a continuidade dos processos de governança mesmo em meio às restrições sanitárias.
Com o fim da emergência sanitária, veio a reflexão: Será que vale a pena manter esse modelo digital como regra permanente?
No Brasil, essa discussão também se materializou rapidamente. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão regulador do mercado de capitais brasileiro, autorizou oficialmente, a partir de 2020, a realização de assembleias digitais, tanto de companhias abertas quanto de fundos de investimento. Mas, diferente da proposta em debate no Reino Unido, a regulação brasileira trouxe desde o início regras claras, exigindo que:
As plataformas ofereçam segurança e rastreabilidade.
Os acionistas possam se manifestar, votar, enviar perguntas e participar ativamente das deliberações.
Haja mecanismos de validação de identidade e preservação dos registros.
Portanto, a digitalização já é uma realidade no Brasil — assim como em boa parte do mundo. Mas sempre acompanhada de uma preocupação com a efetividade da participação e a preservação dos princípios da boa governança.
A tendência é clara: A digitalização dos processos societários veio para ficar. O uso de tecnologia não é mais uma exceção. É parte integrante da governança moderna.
No entanto, o desafio, tanto no Brasil quanto no Reino Unido e em outros mercados, está justamente em encontrar o equilíbrio ideal. Como conciliar os ganhos de eficiência, praticidade e redução de custos com a necessidade de manter a transparência, o engajamento e a proteção dos acionistas?
Esse é o dilema que hoje permeia não só conselhos de administração, como também investidores, reguladores e entidades que defendem a governança responsável.

Linha do Tempo: Evolução Legislativa das AGMs Virtuais no Reino Unido
Reflexão final: avanço, retrocesso ou transformação?
A tecnologia, sem dúvida, é uma aliada poderosa da governança. Ela aproxima, conecta, moderniza e torna processos mais acessíveis, ágeis e eficientes.
Mas, como toda ferramenta, ela carrega riscos quando utilizada sem critérios ou sem os devidos cuidados. Se bem aplicada, fortalece a governança, amplia a participação e melhora a fiscalização. Se mal conduzida, pode se tornar um risco silencioso:
Reduzindo o espaço para o contraditório.
Enfraquecendo a voz dos acionistas minoritários.
Facilitando a concentração de poder nas mãos de poucos.
Por isso, a pergunta que se impõe é direta e urgente: AGMs totalmente virtuais representam um avanço na governança? Ou escondem um possível retrocesso, mascarado de modernização?
Fontes:
Department for Business and Trade (DBT) – UK Government 📄 Corporate Governance Reform Consultation Paper, maio de 2024.
Institute of Directors (IoD) – Comunicado Oficial sobre AGMs Virtuais, maio de 2024.
Investor Forum – UK – Position Paper sobre Digital Shareholder Meetings, 2024.
Financial Times – "UK companies to be allowed fully virtual AGMs under new proposal", publicado em 17 de maio de 2024.
The Guardian – "Virtual shareholder meetings: governance revolution or step back?", maio de 2024.
Nikkei Asia – Reportagens sobre impactos das AGMs virtuais no Reino Unido e na Ásia, 2024.
CVM (Comissão de Valores Mobiliários – Brasil) – Instrução CVM 622/2020 e atualizações sobre assembleias digitais no Brasil.
OECD – Organisation for Economic Co-operation and Development 📄 G20/OECD Principles of Corporate Governance, 2015.
IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa 📘 Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa, 5ª edição, 2015.